domingo, 6 de junho de 2010

Entrevista com Deusébio

Excelente trabalho de Paul Hayward sobre Deusébio no Guardian
Saiu no Domingo passado e fui traduzindo como pude, um bocadinho cada dia.


De África para a posteridade: Como Eusébio iluminou o Campeonato do Mundo
A carreira do maior jogador africano de sempre começou com uma conversa casual numa barbearia Portuguesa e terminou em glória perene.



No verão passado, o primeiro grande futebolista africano foi convidado pelo seu amigo e ídolo de infância, Alfredo Di Stefano, para a apresentação de Cristiano Ronaldo no Real Madrid no estádio Santiago Bernabéu. Comprado por 80M€ ao Manchester United, Ronaldo era nova estrela mundial Portuguesa. Di Stefano deu um toque a Eusébio e disse: "Podias ter sido tu."

Muito antes de George Weah, Didier Drogba, Michael Essien e Eto'o Samuel havia Eusébio da Silva Ferreira, detentor de um lustre simbólico que nenhum outro futebolista poderá igualar, numa altura em que se aproxima o primeiro Campeonato do Mundo em solo africano.
Eusébio afirmou a sua imortalidade na época do Pelé, George Best, Bobby Charlton e Johan Cruyff.
Apesar das suas 64 internacionalizações terem sido conseguidas ao serviço de Portugal - e todos os seus feitos a nível de clubes foram alcançados com o Benfica entre 1961-75 - Moçambique e África podem aponta-lo como prova de que o continente africano deu ao futebol um dos 10 melhores jogadores de sempre, não agora com Drogba e Eto'o, mas há 68 anos atrás.

Será que o "Pantera Negra" ou "Black Pearl", como era conhecido, se sente como figura de proa deste torneio? "Sim, sinto-me muito orgulhoso. Não sinto o peso da expectativa, mas muitas pessoas olham para mim nesta altura em que se realiza o primeiro Campeonato do Mundo em África", diz ele. "É um motivo de orgulho para todo o continente, não apenas a África do Sul. Para alguém nascido em África, para qualquer jogador de futebol, a maior festa do futebol está a ir lá pela primeira vez."

O facto é que o primeiro grande futebolista africano a conseguir reconhecimento europeu esteve 13 épocas no Benfica, onde ganhou sete campeonatos, foi o melhor marcador português entre 1964-68 e ajudou a trazer de novo a Taça dos Campeões para o Estádio da Luz em 1962. Eusébio, imortalizado em estátua nesse Estádio da Luz, é também o embaixador do maior clube de Lisboa.

Marcou 727 vezes em 715 jogos pelo Benfica e os seus nove golos no Campeonato do Mundo de 1966 valeram-lhe a Bota de Ouro. Quatro desses golos foram marcados nos quartos de final na vitória por 5-3 contra a Coreia do Norte. Os quarenta e um golos em 64 internacionalizações pelo seu país adoptivo foram um recorde que durou até 2005, quando foi batido por Pauleta, um artesão quando comparado com este filho de um mecânico de caminhos de ferro, que jogava por uma coca cola e uma sandes, até que uma conversa numa barbearia moldou o seu destino.

O primeiro interlocutor desta conversa era membro da equipa técnica do São Paulo, equipa brasileira que estava a fazer uma tourné em Portugal vinda de Moçambique. Este olheiro não identificado elogiou um jovem avançado que tinha visto jogar num pequeno clube ligado ao Sporting Clube de Portugal. O segundo interlocutor era Bela Guttman, treinador do Benfica, que uma semana depois voava para Lourenço Marques (actual Maputo). Eusébio corria os 100m em 11 segundos. Guttman revoltou o Sporting ao comprar o médio interior esquerdo por 7,500 libras (Eusébio diz agora que foram cerca de 2,000€ ). Duas semanas depois Eusébio jogava por Portugal [1]

A história, até aqui, é romântica, mas o rancor entre os dois clubes de Lisboa dura até hoje. Mesmo hoje em dia, Eusébio mostra-se irritado quando alguém sugere que o Sporting tinha direito à sua contratação. "Eu jogava numa filial do Sporting feeder em Moçambique. O Benfica quis fazer um contrato e pagar-me enquanto que o Sporting queria levar-me como júnior à experiência sem nenhuma recompensa financeira."

"O Benfica teve uma aproximação simpática. Foram falar com a minha mãe e com o meu irmão e ofereceram 1,000€ por três anos. O meu irmão pediu o dobro e o Benfica pagou. Assinaram o contrato com a minha mãe e ela recebeu o dinheiro. Depositou-o num banco em Moçambique com uma cláusula dizendo que se o seu filho não fosse para Portugal e não se tornasse num grande futebolista ela devolveria o dinheiro, porque ela tinha bom coração.

"Saiu uma fotografia num jornal dela com todo o dinheiro numa mesa e com os braços à volta do dinheiro. Nunca tinha visto tanto dinheiro na minha vida. O Sporting tentou espalhar a história de que eu os enganei mas foi ao contrário, porque eles tentaram levar-me de graça enquanto que o Benfica estava disposto a pagar." Para evitar a confusão, o Benfica escondeu-o numa casa no Algarve até que o Sporting se acalmara. Por 2,000€, ou 7,500 libras, qualquer que seja o número correcto, Eusébio viria a ser o melhor jogador português. Ronaldo não deixou o Manchester por menos de 200,000 libras por semana.

O mundo que Eusébio deixou foi o das colónias europeias e da exploração. Os melhores clubes portugueses faziam prospecção de talentos africanos nas "possessões" ultramarinas do país. O imperialismo Português em África começa com a passagem de Vasco da Gama, no séc. XV, a caminho da Índia. O caminho para Portugal já antes tinha sido percorrido por Hilário, Matateu e Mário Coluna, que se juntou ao Benfica em 1954. O salário da nova estrela – insignificante quando comparado com os valores actuais - era o dobro do mais alto alguma vez pago a um jogador africano.

O dia da partida continua marcado na sua memória. E aproxima-se um aniversário. "Dezoito anos de idade, 17 de Dezembro de 1960. Em Dezembro deste ano faz 50 anos que estou em Portugal. Sempre no Benfica, é uma família para mim. Sou embaixador do clube e da selecção nacional. Estou com eles o tempo todo."

Como muitos produtos dessa era dourada, Eusébio descreve as privações da sua juventude com orgulho em vez de pena, talvez para ampliar os seus feitos junto dos mais jovens e desinformados. "Eu já era um bom jogador, só que não era profissional. Jogávamos com bolas feitas de peúgas ou jornal enrolado."

Está em Londres para apoiar a campanha 1GOAL, promovida pela FIFA, que tem por objectivo garantir educação a 72 milhões de crianças até 2015. Eusébio já lançou inúmeros programas em Moçambique e ainda possui dupla nacionalidade. "Tenho lá família, embora cada vez menos com o passar do tempo, e tenho os meus amigos. A maior parte da minha família já passou para o outro lado mas ainda tenho seis familiares em Moçambique," diz. Esta semana regressa para o que será a sua quinta visita este ano.

"Sempre que melhoro as coisas estão melhores. Vamos a África agora e vemos muito mais campos de futebol e melhores infraestruturas. Mas tudo dependerá de como as coisas foram geridas depois do Campeonato do Mundo."

Quando o vemos levantar-se da mesa com as pernas arqueadas e os joelhos incrivelmente dobrados, vemos o alto preço pago fisicamente por 20 anos a jogar numa era mais brutal. Depois de deixar o Benfica em 1975, viajou para a Liga Americana de Futebol jogando pelos Boston Minutemen e pelos Las Vegas Quicksilvers entre outros. Nos anos 60, o Real Madrid desinteressou-se dele quando viram o estado em que estava o seu joelho direito (seis operações, na mesma zona do joelho, deixaram uma espécie de ruína). A sua ambição era rivalizar com Sir Stanley Matthews e jogar até aos 50 anos, mas a dor crónica no joelho forçou-o a abandonar aos 39.

Quando conta a história da apresentação de Ronaldo, a questão da inveja surge na cabeça do entrevistador. Mas Eusébio é claro: "Não existe qualquer inveja. A geração de que fiz parte foi a melhor de sempre. Hoje não existe e eu não trocaria isso pelo dinheiro. Era tudo coração e é por isso que havia tantos grandes jogadores. Portugal, Inglaterra, Brasil, Argentina: Tantos. Por isso sou tão feliz pelo que tive, ter sido um grande jogador. Estou feliz por ter feito parte dessa era.

"O futebol hoje em dia é só comercio. A televisão decide os horários dos jogos. Os jogadores são muito bons, obviamente. Fico feliz pelo jogador moderno que assina o seu contrato e faz imenso dinheiro. Mas os jogadores da minha era ajudaram a que isso fosse possível.

"Respeito o futebol actual mas o do meu tempo era melhor. O futebol não melhorou, apenas evoluiu, desde a bola às chuteiras desde as camisolas aos métodos de treino. Pelé, George Best, Cruyff, Garrincha seriam jogadores impressionantes hoje em dia.

"Quando jogámos com o Real Madrid e ganhámos 5-3 [na final da Taça dos Campeões Europeus de 1962 – Eusébio marcou por duas vezes] tudo estava encharcado e a bola, no final, pesava um kg. Não tinha marca. É por isso que se o Pelé ou o Garrincha jogassem agora seriam maravilhosos jogadores. Pensem nas chuteiras. Não existia calçado personalizado da Adidas. Tínhamos um par de botas para todas as superfícies e o roupeiro mudava os pitons de acordo com as condições do relvado. Às vezes faziam-no à pressa e esqueciam-se de um prego. Quando tirávamos a bota tínhamos sangue no sítio onde o prego estava em contacto com o pé. Nessa época fazíamos dinheiro, mas jogávamos por amor, jogávamos do coração."

Neste espírito fraternal, Eusébio aconselha os participantes no Campeonato do Mundo a assumir um forte espírito de grupo: "O problema é que às vezes os jogadores são muito individualistas. Gostava que os jogadores se unissem e trabalhassem juntos. Se isso acontecesse o futebol Africano daria mais um passo em frente." Irrita-se quando questionado sobre a razão de Portugal não conseguir transformar talento em troféus internacionais: "O que muita gente não sabe é que Portugal ganhou torneios, mas não em escalões seniores. Os juniores sempre foram muito fortes em Camponatos da Europa e do Mundo."

"O problema é que quando as pessoas pensam em Portugal e nos seus grandes jogadores, esquecem que o país é muito pequeno. Não é fácil. Os clubes portugueses ganharam troféus a nível europeu, mas a nível internacional há uma linha muito ténue entre o sucesso e o falhanço e é um país muito pequeno. Comparem o Brasil a Portugal e é David e Golías. As colónias em África – Angola e Moçambique – deram quatro jogadores à selecção portuguesa em 1966 e isso hoje não é possível. Esses países têm as suas próprias selecções. Perdeu-se essa linha de jogadores."

Acerca de Ronaldo, Eusébio diz: "Conheço-o muito bem, é muito bom profissional, um trabalhador incansável. No Real Madrid, quando todos os colegas acabam o treino ele fica e treina livres, penaltis, corre com a bola, dribla. Tem uma excelente ética de trabalho, não precisa que o treinador lhe peça. Quando os meus colegas já estavam em casa a comer, eu continuava a treinar e o Ronaldo é igual, muito trabalhador. Não sou fan do Barcelona mas admiro muito o Leonel Messi. Nunca o vi treinar. Conheço Ronaldo muito melhor. Actualmente Messi é o melhor jogador do mundo. Domina totalmente os relvados."

Para sintetizar o espírito da sua época – os anos 60 e princípio dos anos 70 – perguntem-lhe se Ronaldo poderá ultrapassa-lo como o inigualável de Portugal. "Sou um futebolista, não um especialista," responde. "Sete vezes melhor jogador do campeonato português, melhor marcador do Campeonato da Europa, votado para o top 10 dos melhores de sempre da Fifa. Isto são apenas factos. Não sei se alguém ultrapassará isso. Cabe-vos a vocês decidir. Orgulho-me de poder dizer que fiz algo pelo futebol. Não me comparo com ninguém."

Aponta para Carlos Alberto – o capitão da equipa campeã do Campeonato do Mundo de 1970, que está com ele em Londres, e que marcou o melhor golo de sempre dos Mundiais. "Há coisas que nunca se esquecem, momentos históricos como esse."


[1] Aqui o jornalista deve querer dizer "jogava EM Portugal" e não "jogava POR Portugal", mas no original está escrito: "Two weeks later he was playing for Portugal".

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